Rupturas Imaginadas
Artistas: Larissa Anne | Danilo Cunha | André Firmiano
Curadoria de Maria Luiza Meneses
de 23/11/2024 à 25/01/2025
Rua Araújo, 154 - mezanino - São Paulo

Caminhar pela maior cidade da América Latina é um exercício de observação da diferença. Nela, o ato de parar em qualquer ponto e rotacionar o corpo no próprio eixo, leva a perceber o quanto as distinções de classe são atravessadas por aspectos de raça, gênero e origens. Para tal, é necessário antever que a diferença só é positiva quando não afeta a dignidade humana. Neste caso falamos da riqueza na diversidade de idiomas, culturas, os diversos povos e origens, com suas múltiplas cores, sexualidades e gêneros. O contrário disso leva não à diferença natural e rica entre os seres, mas sim aos tratamentos diferenciativos que conduzem à desigualdade. Como espaço de realização da vida moderna, há séculos a cidade é tema de interesse de artistas em todo o mundo ocidental. No entanto, a cidade contemporânea é uma ruína colonial: organizada em compartimentos, uma simples mirada faz notar as zonas herdeiras da colonização e aquelas abandonadas por ela. Se a análise de Frantz Fanon avalia que a fronteira entre as zonas é mediada pela polícia, as cidades brasileiras aprofundam o processo: as zonas se permeiam constantemente com presenças pobres em meio a bairros ricos, favelas e condomínios de luxo separados por avenidas, pessoas a dormir no chão em frente a prédios onde a economia do país é decidida. As zonas centrais, periféricas e ricas são visualmente compreendidas por todos - um código assimilado. Os mediadores - a polícia - advêm de bairros pobres, treinados para proteger espaços nobres, e estão em toda parte. O próprio conceito de periferia não está mais associado à localização territorial, mas sobretudo à classe social que o habita e suas respectivas condições de vida e acesso aos demais locais. Mundo maniqueísta, separado, dicotômico, imóvel. Contra a rigidez colonial, a força dos movimentos: sociais, culturais, artísticos. Capazes de produzir fissuras, abrir frestas, romper barreiras, historicamente as resistências populares demonstram a força transformadora para a criação de novas formas de habitar, viver, dignificar. Atuantes desde o início da invasão portuguesa, apresentam ensaios de mundo, planos ancestrais, rupturas imaginadas.
A exposição “Rupturas Imaginadas” apresenta o encontro de três artistas a partir de suas distintas relações com a cidade. Cada um a seu modo, Larissa Anne, Danilo Cunha e André Firmiano elaboram visualidades de recusa e fuga de categorias limitantes, ao passo que ensejam imaginários radicais sobre mundos possíveis. Artistas entre a rua e o ateliê, iniciam suas produções a partir do graffiti e da pichação, em seguida migram para produções em estúdio como local onde o tempo de criação se expande. Neste sentido, as práticas de rupturas em seus trabalhos são notadas a partir dos materiais, referências e pesquisas que utilizam como base, tendo a cidade, suas vidas pessoais e a história social como recursos discursivos. Em comum, são artistas que transpõem limites estabelecidos: territórios, temas, categorias, linguagens e técnicas artísticas. Combinam estéticas urbanas, como a pichação em Danilo Cunha e o novo muralismo em Larissa Anne, com o fazer artístico tradicional da pintura, como visto na fatura do pincel em obras de Firmiano e Anne. As instalações de Cunha são produzidas a partir de práticas de coleta comuns na produção do artista. Por fim, suas trajetórias apresentam o gesto radical propriamente vindo dos aprendizados com a arte urbana: a habilidade de romper barreiras, ruptura com formas estabelecidas, realizar sonhos imaginados há séculos. No caso de Anne, Cunha e Firmiano, transpõem inclusive as barreiras do sistema das artes, que separa e categoriza artistas, linhas invisíveis que distanciam certas práticas dos espaços de galerias e museus.
Larissa Anne realiza pesquisas visuais sobre tempo e território. Suas investigações mesclam os sentidos entre passado, presente e futuro, através da escolha de signos que conectam a memória coletiva com as marcas sociais de certos períodos da história recente, regiões e grupos sociais. Desenvolve sua percepção da cidade tanto a partir do graffiti quanto pela formação em arquitetura, razão para a ênfase nas casas, materiais de construção, restos de demolição e objetos do cotidiano. O conjunto de três telas na exposição, apresenta pinturas elaboradas a partir do arquivo pessoal de Anne. Cenas de família convidam o público a notar características de casas dos anos 80 e 90, ambientes presentes no imaginário coletivo. Se engana quem acredita na inocência ou docilidade das pinturas de Anne: os signos, as cores e a configuração das imagens revelam medos, relações de poder exercidas por crianças do jardim de infância, familiares, sonhos de consumo e ilusões de futuro. Ao passo que dialogam com o passado, o conjunto se atualiza a cada passagem do tempo, a partir das reflexões contemporâneas sobre os modos de vida, expectativas e conquistas.
Danilo Cunha elabora obras a partir das referências visuais da contracultura, advindas do hardcore, punk, skate, movimento hip hop, e também da cultura pop. Sua prática consiste no tensionamento e reelaboração de sentidos daquilo que encontra durante trajetos cotidianos e intencionais. Objetos diversos, pedaços de lambe-lambes, demais partes e restos de detritos urbanos são coletados e recompostos numa radicalização do “caos” visual da cidade. Desta forma, ao invés de ordenar a desordem urbana, Danilo se envolve e radicaliza o caos, apostando em misturas e na potencialização da cidade a partir do que ela apresenta. Mais recentemente, sua pesquisa se aproxima da inteligência artificial. Para a exposição, o artista apresenta a pesquisa inédita sobre os modos de ocupação da cidade. Com tijolos, madeiras, lambe-lambes, espelhos de fachadas de prédios, placas de trânsito, videoartes e cédulas desenvolvidas pelo artista, Danilo apresenta obras que dialogam com as contradições e poéticas da cidade, ora pela diferença de materiais, ora pela beleza do reflexo dos céus e do voo dos pássaros.
A mais recente pesquisa de André Firmiano realiza investigações sobre o mito de criação do mundo a partir da filosofia Bakongo. Para tal, o artista resgata a percepção ancestral dos povos que habitavam o norte e centro de África sobre o nascer e o pôr do sol como compreensão sobre vida e morte, e como a mudança de continente a partir do tráfico escravagista levou a uma percepção invertida sobre estar vivo ou morto. Neste sentido, as 14 obras na exposição formam a série “A Quebra da Horizontalidade”, que ao mesclar cenas figurativas e abstratas, e utilizar cores em referência à iluminação artificial, remete a sensação virtual da realidade. Apresenta formas retangulares em alusão às janelas e portais entre dimensões, conectando a história negra ancestral com os usos contemporâneos das redes sociais e o futuro no metaverso. A origem do artista no movimento Hip Hop, especialmente no graffiti e cultura skate, configuram parte importante de sua percepção sobre território e emparelhamento de contextos históricos, artísticos e sociais.
Maria Luiza Meneses


















