Natureza Vívida
Artistas: Renata Laguardia | Giulia Bianchi | Arthur Arnold
Curadoria de Sylvia Monasterios
de 15/05/2025 à 05/07/2025 
Rua Araújo, 154 - mezanino - São Paulo
A pintura contemporânea não se contenta mais em representar: vive uma experimentação constante com a materialidade. Como escreve Georges Didi-Huberman, a imagem é um "sintoma": não um reflexo passivo, mas um corpo que guarda marcas. Nas pinturas que aqui se apresentam, a matéria (seja óleo, argamassa ou tinta acrílica) opera como um arquivo do invisível: a imagem aparece na textura, na cor intensa, no volume, no gesto que rasga o suporte.
É na insistência, na tentativa e erro, na busca, na pesquisa pictórica obstinada que os três artistas da exposição confluem. Renata Laguardia, Giulia Bianchi e Arthur Arnold, a partir de técnicas diferentes, se encontram em vários elementos em comum: o uso de cores fortes e saturadas, a figuração, os gestos marcantes. Quanto a figuração, às vezes vemos apenas uma lembrança, como sugestão de algo para além do que aparece.
Esta mesma sugestão traz como constante a noção no coletivo na temática dos artistas, o que orientou a seleção das obras. A mesa, nas telas de Arthur Arnold, surge como dispositivo simbólico e físico de partilha e troca: um lugar de reunião, escuta e negociação. A natureza, presente nas telas de Giulia Bianchi e Renata Laguardia, é compreendida não apenas como paisagem ou recurso, mas como sujeito coletivo. Há um campo de forças onde a ordem e o caos alimentam os trabalhos.
Oposição semelhante se vê na tensão entre excesso e detalhe em camadas que, ao se acumularem, revelam uma lógica própria de construção de sentido. Esse acúmulo proposital, essa abundância de elementos e gestos, exige tempo, atenção e disposição ao encontro. É uma afirmação de ética do fragmento e da repetição, onde a força reside não na grandiosidade isolada, mas na potência coletiva do pequeno. Cada obra, cada gesto, cada detalhe contribui para a densidade do conjunto. Um acúmulo que, longe de ser caótico, propõe uma nova temporalidade e outro modo de apreensão. Um convite a um olhar demorado, para se perder entre as camadas. 
O excesso aqui não é ruído. É estratégia.
Renata Laguardia traz influências da psicanálise e da maternidade para a pesquisa pictórica sobre paisagens, em busca de paralelos na forma como a sociedade extrativista que vivemos explora tanto matas e florestas quanto o corpo feminino.
Investiga a feminilidade dentro da psicanálise tradicional, que ecoa na escolha de elementos simbólicos como a terra, a água e a fertilidade. Há uma inquietação em conhecer e descrever a paisagem, visível no excesso de detalhes e nas múltiplas camadas de tinta que conferem profundidade, especialmente aos azuis de seus céus. Renata investiga a visão e o olhar como modos de apreensão do real, partindo da hipótese de que somos constantemente enganados pelo que vemos, e negamos o que nos rodeia. As imagens, criadas a partir da lembrança de referências observadas por poucos segundos, tornam-se exercícios de memória e esquecimento, onde lida “com o que resta da visão”. Ao deslocar o foco do ser humano para a natureza (igarapés, vegetação, jardins, fragmentos de céu, cerrado), ela se aprofunda na noção de paisagem.
A pintura de Giulia Bianchi desafia os limites entre natureza e cultura, sujeito e objeto, inspirada por uma visão animista do mundo natural. Influenciada por pensadores como Philippe Descola e Jakob von Uexküll, que defendem que a natureza não existe como entidade independente, mas como rede de relações e percepções, ela mergulha na subjetividade dos animais, frutos e plantas, construindo um campo sensível onde o olhar não é mais centrado no ser humano. Embora preenchidas por elementos naturais, as obras não se enquadram na tradição da paisagem; ao contrário, trazem recortes que suprimem a noção de distância e amplitude.
Giulia cria imagens sinestésicas poderosas, que evocam texturas, aromas e sabores. A pintura, aqui, não é uma janela para um mundo externo, mas um corpo sensível que vibra, reverbera e afeta, atua no domínio das forças — é ali que ela produz sensações, é um corpo em movimento. Nota-se uma intensidade gestual e cromática nas telas, mas há também uma escuta cuidadosa da vida material das coisas, uma atenção delicada ao que pulsa. Nos convida a repensar nossa forma de ver e nos relacionar com o mundo, abrindo espaço para um outro tipo de percepção, onde tudo está vivo e em constante transformação.
Arthur Arnold apresenta aqui um desdobramento da pesquisa que desenvolve desde 2022, em que a mesa é vista como ritual do coletivo e do encontro. É um questionamento de cenas que não são individuais — são experiências do inconsciente coletivo que se repetem ao longo da vida, como o caos de um almoço de domingo.
A pintura de Arthur se caracteriza por uma presença intensa de texturas e volumes, onde a argamassa misturada com pigmentos resulta no que o próprio artista chama de uma “brutalidade refinada”. Utilizando espátulas de pedreiro e outras ferramentas encontradas em lojas de construção, ele produz relevos marcantes que extravasam a tela, em um gesto pictórico farto, quase escultural. A argamassa, central para a construção de suas telas e fruto de uma longa pesquisa, não seca, mas “cura”, e muitas vezes apresenta rachaduras, que o artista abraça como parte da composição. Em algumas das obras aqui mostradas, Arthur introduz também a talagarça, material usado para fazer tapetes, mas que neste contexto traz uma transparência inusitada, revelando o bastidor com honestidade e mostrando a pintura em sua crueza e materialidade. A fartura e o gesto aparente, longe de serem acidentais, se consolidam como marcas do artista.
Assim, ao materializar a vida e a natureza de diversas formas, essas obras não apenas representam vida, mas a encarnam. A pintura é o modo pelo qual é possível tornar visíveis as forças invisíveis. A matéria pictórica — com rachaduras, pátinas e pigmentos — torna-se um "fantasma que insiste". Não apenas mostra: persiste.

Sylvia Monasterios​​​​​​​