Interlúdio
Artistas: Maíra Acayaba | Luiz Eduardo Rayol | André Weigand
Curadoria de Mariana Leme
de 04/05/2024 à 08/06/2024
Rua Araújo, 154 - mezanino - São Paulo

Alguns painéis brancos deixam entrever o espaço interno. Num deles, há uma diagonal formada pela imagem de água e areia, Rio Negro. A fotografia que recebe o visitante lembra uma imagem aérea, como se fosse um drone a mapear — colonizar? — a paisagem. Mas foi feita com os pés no chão, molhados, provavelmente: a artista deixou-se afetar pelo lugar.
Em Interlúdio, exposição de Maíra Acayaba, Luiz Eduardo Rayol e André Weigand, a apreensão dos trabalhos depende das relações criadas entre eles e o espaço, que também se transformam na medida de uma caminhada. O sentido do conjunto se dá pelas frestas, ou num intervalo passageiro, como aponta o título derivado do vocabulário musical.
Da entrada, é possível ver um grande volume suspenso no ar que lembra uma pedra, pesada. Toda história do mundo - XXII, de Rayol, preenche parte do espaço de maneira imponente. De perto, é possível ver como se dá a materialidade da obra. E, então, sentir sua leveza. Ao seu lado, um pequeno Chakra que parece ter se desprendido de um todo maior e foi guardado com cuidado, numa moldura. Mas, embora os trabalhos nos convidem a imaginar histórias, estas serão sempre provisórias.
Duas fotografias em preto e branco foram feitas, por Weigand, em longa exposição. Esta técnica, ao contrário de “congelar” um instante da paisagem, mostra sua própria transitoriedade: mais que refletir o céu, a massa de água parece estar prestes a transformar-se também em luz, impalpável, ao mesmo tempo em que destaca a solidez das formações rochosas. Estas, por sua vez, num tempo muito mais largo que a percepção humana é capaz de apreender, também se transformarão. A depender dos acasos, se dividirão em outras menores, ou talvez em areia fina, como a do Rio Negro de Acayaba. A sílica presente na areia guarda o potencial de transformar-se em vidro, este material conhecido da humanidade há alguns milhares de anos, muito usado no armazenamento de coisas preciosas como água limpa.
Iara, outra fotografia de Weigand, parece operar o inverso. Nesse caso, a solidez das águas, como que transformadas em pedra, sugerem algo de infinito, que não termina justamente por causa da mudança constante, ou o “começo, meio e começo”, nas palavras do intelectual quilombola Antônio Bispo dos Santos. O espelhamento cria também um limiar, em que os dois lados de uma mesma imagem formam algo maior que sua própria soma: espécie de confluência visual, sugerindo tantas outras imagens quantas combinações forem possíveis. Afinal, uma confluência, no sentido de Bispo, é o encontro entre diferentes que, ao contrário de produzir uma síntese ou um todo dominante, amplifica os corpos, sem retirar-lhes a singularidade da origem.
Suspensas no espaço — e, quem sabe, no tempo —, há quatro vistas de uma praia, em que se vê uma estrutura de concreto em ruínas. Não se sabe ao certo o que teria sido esse exemplar “brutalista” da arquitetura brasileira, mas as pessoas ao fundo e os outros seres que habitam o lugar parecem não lhe dar importância. As fotografias de Acayaba não apenas registram o abandono da construção (algo relativamente comum no Brasil), mas parecem sugerir o absurdo da ideia de progresso. Nesse caso, o estranhamento se materializa na forma de uma estranha “carranca” que nunca navegará o mar à sua frente; a “boca” está aberta, mas parece que foi fincada num espeto. Apesar de tudo, a vegetação rasteira cresce, as folhas das palmeiras seguem arqueadas pelo vento, a luz elétrica se transmite pelos fios. As imagens, de fato, mostram os quatro ângulos do objeto, mas ele segue impassível, suscitando interpretações tão diversas quanto vagas, ao mesmo tempo que, sabemos, está sendo corroído.
Num canto formado por uma parede e os caixilhos da janela, há outro trabalho leve de Rayol, de aparência pesada. Têmpera e acrílica qualificam os fragmentos de papel, sugerindo ou ampliando relevos. Tân-ato contém “laços” em suas extremidades que servem de sustentação ou, em outros casos, apenas estão ali, talvez como a vegetação rasteira da praia: inútil, do ponto de vista do “progresso”. Elas formam membranas, composição e ritmo, como se estivessem em vias de se movimentar. Tânato, a personificação da morte na antiguidade grega, não tem o sentido de fim, mas de passagem, explicitado na divisão da palavra pelo artista, que termina em “-ato”: recomeço, portanto.
Não por acaso, o espaço que acolhe os trabalhos situa-se também num limiar, em que os vidros transparentes deixam a cidade à mostra, e o público é convidado a subir as escadas ao lado de um estacionamento de carros — esses “seres” que em pouco tempo se tornarão tão estranhos quanto aquele de concreto, nas fotografias na praia. Na verdade, talvez seja possível dizer que estamos todos imersos numa espécie de interlúdio: o meio entre dois começos no qual as consequências de séculos de extrativismo humano e não humano se tornaram agudas.
Ao fundo da galeria há uma fotografia envolta por azulejos que resistiram a demolições e foram coletados por Weigand. Azulejos que um dia foram barro e que escaparam de virar entulho, imagem de casas e coisas que não se sabe bem onde estão. Ao seu lado, outro pequeno Chakra guardado com cuidado e mais uma das vistas da construção na praia. A variação de dimensões dos trabalhos faz com que eles próprios se modifiquem, sugerindo que nem mesmo a singularidade de um corpo exista de maneira inequívoca. Afinal, a vida também acontece pelas frestas, em confluência.
Mariana Leme


















