Domar o Tempo
Artistas: Leandro Machado | Vanessa Ximenes
Curadoria de Henrique Menezes
Rua Araújo, 154 - mezanino - São Paulo
de 22/02/2024 à 24/03/2024
​​​​​​​Dominar o fogo, prever as estações, manipular toda matéria ou disciplinar qualquer comportamento: afeitos ao poder e à razão, somos conduzidos pela ambição de desbravar e governar a realidade, seja em nosso cotidiano estrito ou no mais abstrato coletivo. Aceitar o entorno como um fato social amoldado pela força e pela ciência — pelo gesto e pela consciência — talvez seja uma adequada chave para adentrarmos a exposição Domar o Tempo. Reconhecendo as particularidades e complexidades das produções de Leandro Machado e Vanessa Ximenes, podemos sugerir que as séries reunidas apropriam-se de elementos — por vezes traumáticos — de múltiplas temporalidades para absorver suas forças, deglutir e esgarçar suas simbologias e, como consequência, reinserir suas obras através de formulações igualmente individuais e universais.
Ergue-se ao centro da WG galeria um grande sudário em algodão com onze metros de largura: para além de uma mera exacerbação material, a obra de Leandro Machado não busca protagonismo pela escala agigantada, alcançando seu efeito através de uma estratégia oposta, quando apenas a observação à curta distância imprime o teor pretendido pelo artista. Às centenas, enfileiram-se marcas deixadas pela pressão e permanência de ferros de passar roupa, índices memoriais do período colonial quando a atividade exaustiva frente ao fogo açoitava homens no trabalho extrativista e mulheres na submissão a tarefas não menos estafantes. Cada ferrogravura — evocando também as escaras que imprimiam a posse do corpo negro à base de tortura — é derivada de um fazer ritualístico no qual Leandro empenha oito, nove, dez horas de ação performática — embora jamais encenada — na busca por lenha, alimentando as chamas, aquecendo o metal e expondo-se ao fogo para marcar o tecido.
Com uma trajetória que se adensa há duas décadas, a produção de Leandro Machado ainda é pouco reconhecida para além das fronteiras do Rio Grande do Sul — assim como tantos nomes cuja visibilidade é eclipsada pela posição periférica no mapa nacional. Sem limitar-se às reflexões raciais que hoje balizam a adequada atenção das instituições culturais nacionais, o artista vem empregando técnicas e materiais ditos precários — a exemplo de pinturas que subvertem o alisante de cabelo henê, das frotagens extraídas em necrópoles, além de suas grandes esculturas com gradis coletados pela paisagem ou a inédita série Interditos, composta por instrumentos de sopro emudecidos.
Leandro dá forma a escrevivências sedimentadas igualmente no passado dos oceanos e da terra, mas também nos muros e no asfalto — não esqueçamos a origem urbana do artista. Ao elucidar o percurso de Leandro, o crítico Paulo Herkenhoff sugere que “a dimensão trágica do tempo da escravidão no Brasil em Machado são vestígios de descaminhos”: seja através do exílio ou dos pequenos trânsitos cotidianos, a ideia de deslocamento é uma constante na produção do artista, alimentada pelas vicissitudes de um itinerário solitário, pelo estado meditativo nas peregrinações ou em cada revelação daquilo que Leandro nomeia arqueologia do caminho.
À semelhança do fazer de um arqueólogo, Vanessa Ximenes também revolve o tempo na busca por narrativas que poderiam se esmaecer pelo esquecimento: a ação gestual sobre a bruta matéria — assumindo a ancestralidade do barro como mineral — é acompanhada por um rememorar que une, em simbiose, a figura de olhos e vidros, aproxima mãos entrelaçadas e relógios arcaicos. Facejando passados recentes, a artista confere às obras um caráter igualmente confessional e terapêutico: na mesma medida, deposita nas formas intenção memorialística e reconfigura as simbologias através do misticismo e do sincretismo — do tarô à umbanda. Drummond talvez tenha criado uma das mais pungentes descrições da cor em nossa literatura ao relatar o encontro do vermelho e do branco, paleta recorrente na produção de Vanessa: “por entre objetos confusos, mal redimidos da noite, duas cores se procuram, suavemente se tocam, amorosamente se enlaçam, formando um terceiro tom a que chamamos aurora”.
Há ferro e há fogo. Leandro e Vanessa dão corpo ao tempo não por sua reencenação, mas sim ao compartilhar o que ainda não está apaziguado, buscando na verdade das ferramentas e materiais o simbolismo do que resta bruto no passado. Do mar, não há como abrandar as tormentas.

Henrique Menezes