Abrir espaço para o infinito
Artistas: Dolores Orange | Julia da Mota | Tathyana Santiago
Curadoria de Marina Bortoluzzi
de 13/02/2025 à 12/04/2025 
Rua Araújo, 154 - mezanino - São Paulo
A metáfora da janela como essência da imagem pictórica foi formulada por Leon Battista Alberti, em Da Pintura, em 1435 — uma abertura para um espaço fictício construído em perspectiva. A superfície da pintura torna-se, assim, um vidro "transparente", através do qual o observador contempla a profundidade dos objetos retratados. A literalidade da janela também é representada na história da arte desde as figuras do século XV, em frente a paisagens idealizadas. Nas pinturas românticas alemãs, do século XIX, a janela ocupava lugar central na composição, apontando-se como um limiar entre o mundo interior e o exterior. Desde então, a estrutura da janela passou a ser associada ao reflexo da alma.
A pintura abstrata oferece uma satisfação visual e emocional semelhante à da paisagem na janela. No século XX, a janela aberta torna-se um veículo para a sensualidade abstrata da cor pura. A janela, ou a pintura, transforma-se em um canal ou portal para a canalização do divino, manifestação da nova espiritualidade. Mark Rothko dizia que suas “pinturas eram fachadas, às vezes abrindo uma porta ou uma janela, ou duas portas e duas janelas”. Agnes Pelton também enxergava suas obras assim: “Essas pinturas são como pequenas janelas, abrindo-se para a visão de uma região ainda pouco visitada conscientemente ou por intenção — um reino interior, em vez de uma paisagem exterior”.
Dentre os movimentos espirituais que influenciaram os artistas do século XX, o vínculo entre ideias metafísicas e ciência foi um elemento importante. Esse novo conhecimento permitiu a especulação sobre os aspectos invisíveis do universo material e o surgimento de uma nova linguagem, a partir do conceito da quarta dimensão — em que o entendimento do mundo tridimensional com o senso autocentrado de cima-baixo e esquerda-direita desaparece e os objetos podem ser vistos de todos os lados concomitantemente, dissolvendo as noções fixas de espaço e tempo. Linda Henderson, historiadora de arte, examinou a correlação sobre abstração e a quarta dimensão em um ensaio com base nos textos dos intelectuais Max Weber; Guillaume Apollinaire; e P. D. Ouspensky.
Em 1910 — antes do clássico Do Espiritual na Arte, de Kandinsky — Weber explicou que a quarta dimensão é “a dimensão do infinito”. Apollinaire, em seu artigo de 1912, descreveu a quarta dimensão como “a imensidão do espaço que se eterniza em todas as direções em qualquer momento dado”. Para Ouspensky, “o sentido do infinito é a primeira e mais terrível provação antes da iniciação. Nada existe. Uma pequena alma miserável sente-se suspensa em um vazio infinito. Então até mesmo o vazio desaparece. Só resta o infinito, uma divisão constante e contínua e a dissolução de tudo”. Charles Howard Hinton, uma das fontes de Ouspensky, acreditava que era necessário que o indivíduo abandonasse as limitações da percepção espacial tradicional — eliminando elementos perceptivos “autoimpostos” para alcançar a transcendência do espaço e desenvolver uma maior consciência. Ouspensky também cita Plotino (o fundador do neoplatonismo):
“Você pergunta, como podemos conhecer o infinito? Eu respondo, não pela razão. É a função da razão distinguir e definir. O infinito, portanto, não pode ser contado entre seus objetos. Você só pode apreender o infinito por uma faculdade superior à razão, entrando em um estado no qual você não é mais seu eu finito – no qual a essência divina é comunicada a você. Isso é êxtase. É a libertação de sua mente de sua consciência finita. O semelhante só pode apreender o semelhante; quando você deixa de ser finito, torna- se um com o infinito. Na redução de sua alma ao seu eu mais simples, à sua essência divina, você realiza essa união – essa identidade.”
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O título que dá nome à exposição: “Abrir espaço para o infinito” pode ser interpretado poeticamente e conceitualmente de diferentes maneiras. Se pensarmos literalmente, pode parecer contraditório e até paradoxal. Mas se formos absorve-lo como pede a exibição, criamos condições para a expansão da percepção, de modo que a disposição ilimitada abra os caminhos para fluir as reflexões das obras apresentadas de três artistas mulheres brasileiras, de origens diversas, que fazem parte da nova geração das artes visuais: Dolores Orange (1987) nascida em São Luís do Maranhão, criada na região metropolitana de Recife e residente em Belo Horizonte; Julia da Mota (1988), de São Paulo capital; e Tathyana Santiago (1987), de Aracaju, Sergipe.
Cada uma, com sua subjetividade, vivência e ancestralidade, contribui com composições que refletem suas experiências sobre três eixos convergentes da exposição: o espaço, o corpo feminino e a cor. Dolores traduz formas abstratas, carregadas de intensidade e cura, por meio da cultura popular brasileira, expressa nos festejos, nas fachadas e platibandas recifenses, assim como na vibrante energia cromática da congada e das festas sincréticas mineiras. Julia apresenta, em seu expressionismo aquarelado abstrato, as intersecções entre paisagem, dualidade e fronteiras, observadas no minimalismo abstrato e na estética bruta da arquitetura das grandes cidades, como São Paulo e Paris. E Tathyana retrata o ambiente doméstico e íntimo das casas sergipanas, como um santuário habitado pela figuração-abstrata da presença feminina, colocando em destaque a sacralidade da mesa e da cadeira como símbolos de acolhimento, encontro e rotina.
Com uma exposição majoritariamente composta por pinturas, os trabalhos exalam as habilidades técnicas das artistas em pintura à óleo, em acrílica e acrílica líquida e pastel oleoso sobre papel ou tela, em distintos formatos. A cor é o elemento central que guia intuitivamente, todas as três, para construirem narrativas abstratas que elevam estados de consciência e conduzem para uma trajetória cósmica. Elas adotam, mesmo que instintivamente, a concepção - por Joseph Beuys - da arte como centro de energia, onde a cor age em fluxo contínuo e é ferramenta para essa viagem ou extensão do tempo. A predominância cromática é pelos tons quentes, como a força do vermelho, do rosa, do roxo, do laranja e dos terrosos, em harmonia com as cores frias, como o violeta, o azul e o verde. As texturas em camadas coloridas estabelecem esse estado metafísico da quarta dimensão. As telas abstratas são, ao mesmo tempo: janela, paisagem e infinito.
“Abrir espaço para o infinito” é o prelúdio ao vazio. O movimento ressoa em sinergia à transição de ano, em que fazemos a varredura na nossa casa — física e mental, revisamos o que desejamos levar adiante para o agora e avaliamos onde queremos ocupar o nosso corpo no instante presente. Abrimos espaço nas nossas gavetas internas, abstraindo elementos e extraindo excessos — tal qual as artistas desta exposição com suas jornadas pessoais e práticas artísticas — para criar vazão para a expansão das infinitas possibilidades de interpretação e existência.

Marina Bortoluzzi

Referências:
ELGER, Dietmar. Abstract Art. 1. ed. Slováquia: Taschen, 2023.
KARMEL, Pepe. Abstract Art : A global history. 1. ed. Londres: Thames & Hudson, 2020.
MOSS, Karen; et al. Illumination: The Paintings of Georgia O'Keefee, Agnes Pelton, Agnes Martin, and Florence Miller Pierce. 1. ed. Londres: Merrell Publishers Limited, 2009.
TUCHMAN, Maurice; et al. The Spiritual in Art: Abstract Painting 1890-1985. 1. ed. Los Angeles: Los Angeles County Museum of Art, 1986.